Fragmento etnográfico: um bom encontro - 23/01/2020
- Marcio Maia Malta
- 21 de mar. de 2020
- 5 min de leitura
Atualizado: 16 de ago. de 2020

O dia estava nublado mas não como no dia anterior. Fomos para Coroa Vermelha ainda de manhã , no caminho da BR 367, tio Joubert mostrou um pacote de beiju que era vendido em um tablado no asfalto (em alusão ao beiju que havíamos comido na casa da Rosimar). Ele comprou dois pacotes de farinha de puba e eu comprei o pacote de beiju. Passamos pelo estacionamento Pataxó e , mais à frente, seguimos pelo extenso corredor de concreto que leva ao comércio Pataxó (grande construção circular).

Chegando à loja de artesanato, encontramos Rosileide, Márcia e Italo. Avisaram que Rosimar não estava em casa pois havia ido à igreja com a Mãe. Ficamos conversando algum tempo na porta da loja. Depois, demos uma volta na área do kijeme de rituais. Marcelo estava tirando fotos, aproveitei e pedi que registrasse o trançado de palha do teto do Kijeme. A técnica parecia muito com uma das que Berta Ribeiro descreveu como tradicionais em um texto da Suma Etnológica brasileira dedicada às técnicas e cultura material dos povos indígenas. Já eram onze horas quando mencionei à Marcia que as fotos que havia feito de Coroa Vermelha no dia 19/01 ficaram boas mas não haviam enquadrado perfeitamente o conjunto de casas à direita da passarela, que levava ao Cruzeiro da primeira missa no Brasil. Mostrei pra ela, nas fotos, um ponto próximo ao Cruzeiro que dava numa beira de praia mais nos limites preservados da aldeia. Esse ponto permitiria pilotar o drone para dentro do mar e jogar a perspectiva para o continente. Márcia se dispôs a ir conosco. Pedi um tempinho utilizar o banheiro acessível do comércio. Quando retornei, chamamos Márcia, e Italo nos acompanhou. Seguimos pelo corredor curvo do comércio Pataxó até sairmos na passarela. Logo no início do caminho para o cruzeiro, do lado do carrinho de pipoca e coco caramelizado, um homem vendia, em um tablado de meio metro de área, uma fruta redonda com casca verde. Marcia disse que era umbu e se aproximou do vendedor. Ele disse que, pra ela, fazia uns 75% de um saco de supermercado por R$6,00. Eu só tinha R$9,00, Marcia olhou para o moço que prontamente colocou mais duas mãos generosas da fruta na sacola. Fomos andando pelo quente corredor de concreto enquanto conversávamos. Observávamos os artesanatos e eu me deleitava com o sabor daquela fruta que comia pela primeira vez. Dos dois lados do caminho, passávamos por lojas de 2m de fachada que vendiam os mais variados presentes não-indígenas e indígenas (Pataxó e de outros povos como Máscaras Waujá, cerâmicas com padrões marajoara e de povos de Roraima e outras regiões do norte), bebidas, alimentos locais. À medida que nos aproximavámos da entrada à esquerda do comércio Pataxó propriamente dito, passava a predominar o artesanato Pataxó. Chegando próximo ao Cruzeiro de granito, continuamos andando na direção da orla da praia, de um lado e outro da entrada de 4 m² que levava à areia, haviam pequenas lojas, restaurantes, bares e quiosques. Na primeira loja, à esquerda da entrada, pendia do mourão do telhado uma placa de madeira com a inscrição “Farmácia de Ervas Indígena”. Márcia comentou que era ali que seu Itambé (Alberto do Espírito Santo Mattos) permanecia boa parte do dia. Naquele instante ele não estava lá. Seguimos e, chegando à areia da praia, o tempo estava nublado e ventava muito. Visivelmente não estava propício para vôos. Ainda consultei um aplicativo que calcula por gps condições climáticas in loco e a recomendação era pra não voar. Desisti de fazer as fotos. Ficamos ali, seduzidos pela refrescante brisa marítima que aliviava a sensação de mormasso, apesar da falta de raios solares vigorosos. Marcelo e Tio foram até a água, caminharam nos arredores. Márcia permanecia ao meu lado falando sobre o lugar, apresentou um primo que tirava um caiaque das águas. Ele fazia passeios com os turistas, levando-os até a área de recife da ponta do Mutá, que forma a famosa coroa que dá nome ao lugar. Ficamos ali conversando, observando, uma meia hora talvez. Fomos caminhando para ir embora, e passando pela entrada, na loja agora à direita se encontrava uma figura imponente. Um homem de pele morena, cabelo comprido e prateado amarrado em um belo rabo de cavalo e óculos escuros.Ele estava numa cadeira de rodas e parte da perna direita fora amputada. Márcia comentou que aquele era sr. Itambé. Sem pensar e como que magnetizado, fui andando em sua direção. Entramos na loja e Márcia o cumprimentou, lembrando-o de quem era filha. Em seguida, todos nós nos apresentamos e começamos a observar as prateleiras de remédios, entremeados por fotos e quadros com notícias jornalísticas sobre a efetividade dos medicamentos do pajé Itambé. Sem embaraço, ele começou a conversar comigo dizendo que tinha uma cadeira de rodas motorizada como a minha, eventualmente eu perguntava sobre os remédios. Ele continuava falando, jocoso contou uma piada pro meu tio e depois pra mim. Em certo momento, me virei pra ele e entabulamos um diálogo face a face. Percebi que ele queria falar, fitava-o com atenção, enquando ele narrava uma crônica de briga de facão. Pedi autorização para gravar e ele concedeu. Ja com o gravador ligado, avisei novamente que estava registrando. Foram abordados temas interessantes: as crônicas de facão, a história de Juacema numa versão que eu não conhecia, fabricação das rodas de mandioca, a história dos Cruzeiros de Coroa Vermelha. Enquanto ele falava, eu escutava hipnotizado e observava turistas que ficavam curiosos com aquela reunião, parentes de seu Itambé também apareciam pra ver o que ocorria e conversavam com Ubirai, um dos filhos do patriarca. A certa altura, duas crianças, seus netos, aproximaram-se do avô, cumprimentando-o com muito carinho. O avô lembrou os pequenos de um verso que sintetizava o modo como gostava de abraçar (abraço apertado, suspiro dobrado de amor sem fim). Pude notar, o tempo todo ao longo da nossa conversa que seu Itambé estava atravessado por uma rede de carinho e respeito. Depois de avaliar tais fatos enquanto os escrevia, percebi que aquela atração que senti, de fato era a qualidade de um carisma da liderança, pela primeira vez vi, em carne e osso, um bigman. Atravessado por muitos círculos de relações, sr. Itambé emanava generosidade nas palavras que ia me dando e quando já estava cansado, depois de beber um copo d’água, ao final da inesperada entrevista, ainda me disse: “Me desculpe se a palestra não foi boa..”. Nas movimentações para ir embora ainda conversamos com Ubirai, filho do sr. Itambé, que através de Márcia assuntava o que eu estava fazendo e pedindo um retorno da pesquisa. Rapaz inteligente também formado nas humanas e que já havia representado seu povo junto ao governo atuando na área de direitos da criança e do adolescente. Ubirai relatou alguns limites dos não indígenas que consideram a adolescência um fato universal. Suas palavras corroboravam a crítica de Margaret Mead. Fomos nos despedindo e pagando o rapé e resina de amesca que eu havia comprado. Marcia se despedindo do sr Itambé perguntou o jeito que gostava de comer cuscuz e disse que levaria pra ele em breve.

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